Prólogo: A Criação


  Antes de tudo, reinava o vazio, o mero pensamento de existir não passava de ilusão, o próprio tempo não era uma realidade, apenas o nada, nem preto , nem branco. 

  Porém, esse vazio, na verdade, agia como uma casca de um ovo, o qual lentamente estava se rompendo. Sua primeira rachadura liberou uma enorme quantidade de informações no que antes era vazio, com isso, o tempo passou a existir.

 Após mais algumas rachaduras, o ovo foi aberto por completo, os dois lados da casca lentamente foram se distanciando, gerando o próprio universo, mas tudo ainda estava solitário.

  De dentro do que antigamente era um ovo, duas figuras surgiram, a "Luz" e a "Sombra". Gêmeas que haviam acabado de nascer.
 Ambas eram bem próximas e a companhia uma da outra supria a solidão em meio a imensidão do universo, o qual estava lentamente expandindo-se. Porém tudo mudou a partir do momento em que suas naturezas foram reveladas.

 - Sombra, olha o que eu posso fazer! - A pequena garota de pele dourada chamou pela irmã, Luz possuía longos cabelos encaracolados, mas todo seu corpo era de um dourado luminoso.

  - Luz, você tá empolgada hoje. Fico feliz de te ver assim. - Sombra, em contraste com sua irmã, possuía longos cabelos lisos, enquanto seu corpo iluminado era totalmente prateado. Ela observava curiosamente o que Luz iria fazer.

 - Piu, Piu! Olha! Que lindo! Brilha tanto! -Ela começou a fazer um gesto de pistola com as mãos e uma pequena esfera brilhante surgiu, e aos poucos começou a se mover até desaparecer ao longo do universo, porém seu brilho permanecia. Dessa forma, a primeira estrela surgiu e seu brilho passou a estar presente.

 - Uau! De novo, de novo! - Ao pedir isso com empolgação, a dourada começou a gerar diversas estrelas que então preencheram o antes vazio espaço. 
 
 Sombra, encantada pela habilidade da irmã, tentou fazer a mesma coisa, porém, o resultado revelou-se terrível: o brilho de uma estrela próxima é apagado e uma enorme onda de energia pôde ser sentida, no lugar da estrela destruída, sobrara o vazio.

 - Minha irmã? O que houve? - Luz foi até sua irmã, preocupada ao sentir a onda de energia e só percebeu ela agachada, assustada pelo que havia feito. 

 - M-maninha, desculpa. E-eu quis fazer o brilho como você, mas... isso aconteceu. -Ela apontou para o vazio onde havia uma estrela anteriormente. Luz abraçou a irmã que chorava e tremia de medo.

 - Não precisa se preocupar, o que importa é que você tá bem. Era só um brilho, você não fez por mal. - Ela sorriu gentilmente para a irmã. - Mas estou surpresa, isso quer dizer que juntas podemos moldar tudo, podemos deixar nosso mundo ainda mais divertido! Vem comigo, irmã. - Uma mão dourada foi estendida para a prateada que, a princípio estava hesitante, mas a segurou e sorriu.

 O poder de criar e o de destruir, duas metades da mesma moeda. Graças a essas naturezas opostas, o Universo foi colorido por galáxias, planetas e muitos outros astros, quaisquer aspectos mal posicionados pela Luz eram corrigidos pela Sombra, um trabalho impossível de se fazer sem uma a outra. O espaço antes tão vazio, agora se encontrava repleto de cores, mas uma sensação estranha começou a dominar a Luz.

- "Será que eu poderia criar seres com inteligência? Eu amo conversar com minha irmã, mas o que uma vida poderia me contar? Eu não consigo nem imaginar as possibilidades." - A sensação a deixava inquieta, e ela decidiu testar suas capacidades, o nome dessa inquietude era empolgação.

 Luz selecionou um planeta próximo dela, de cor azulada e com áreas rochosas e decidiu encolher e entrar dentro dele. Ela estava em uma praia, a areia ali presente era tão branca e macia a ponto de fazer cócegas, as ondas estavam quebrando próximas a costa e colidiam contra rochas em alguns lugares. Ela estava encantada com tamanha beleza.

 - Nós fizemos isso? É tão lindo, eu espero conseguir trazer a Sombra para cá, ela com certeza vai amar isso. - A paisagem misturada com o azul límpido do oceano hipnotizou ela. -Ah, espera! Foco, foco! Eu vim aqui para tentar criar vida! - Luz recobrou sua atenção e começou a desenhar na areia. - Vamos tentar algo mais fácil de desenhar primeiro...

 Ela rabiscou na areia um formato oval, depois um triângulo dividido ao meio e enfim um círculo para representar os olhos. 

 Sombra, que estava se sentindo só, foi atrás da irmã e a encontrou no planeta azul, ao descer até ele, encontrou Luz agachada na areia, concentrada em alguma atividade.

 - Maninha, o que você tá fazendo? 

 - Sombra, olha, olha! O que achou? - Ela mostrou o desenho, porém não mencionou a intenção que possuía para a irmã.

 - De verdade? Você não desenha muito bem, maninha. - Um comentário fora lançado e desanimou a garota dourada, que ficara cabisbaixa, preocupando a prateada. - E-ei, eu não tava falando sério, foi uma brincadeira, maninha, não fica triste. - Sombra tentava animar a irmã de todas as formas possíveis. Após algumas tentativas, Luz estava recuperada.

 - Bem, eu queria tentar criar algo diferente hoje, mas não sei se vai funcionar...

 -Acredite em você mesma, eu tenho certeza que vai conseguir! 

 Ao receber o encorajamento de Sombra, Luz esticou a palma da mão para o desenho e o que outrora era areia, passou a ganhar cores e texturas diferentes. Assim surgiu o primeiro animal.

 - Consegui! Olha, Sombra! Consegui criar vida!

 A prateada olhava para o sorriso sincero de sua irmã e respirou fundo.

 - Maninha, você já havia criado vida antes. Olhe todo esse verde no horizonte. - Ela aponta para a vegetação longe da praia. - Elas estão vivas também. Eu sempre acreditei que conseguiria. Talvez até tenham "sentimentos", como nós.

 - Sombra... você tem razão. Graças a você, conseguimos criar um verdadeiro paraíso, tenho certeza que muitos outros seres poderão surgir aqui. 

 Ambas seguraram as mãos e logo passaram a encarar o horizonte, a estrela que se punha deixava o céu azul em um tom avermelhado hipnotizante, as irmãs sentaram-se na areia e contemplavam o trabalho que executaram até notarem que o animal criado estava se debatendo, tentando chegar à água. 

 - Coitadinho, parece que não consegue viver em terra firme, vou te levar até a água, pequeno. - Sombra levantou-se e tentou pegar o peixe em mãos, porém assim que o tocou, a existência dele fora apagada. Sombra voltou a ficar triste, porém voltou o olhar para sua irmã, quem estava incrédula. - Luz, desculpa. Eu não queria fazer isso...

 - Não foi sua culpa... foi minha por não ter te impedido, sei da sua natureza e mesmo assim 
permiti isso acontecer. Mas podemos recomeçar de novo. - Ela disfarça com um sorriso e refaz o desenho de peixe. Assim que dá vida a ele de novo, o leva até a água e permanece encarando o horizonte com uma feição indecifrável. 

 - Maninha? Luz? - Sombra tenta chamar pela irmã, mas não recebe resposta imediata. Logo, a noite chega e todas as estrelas que ambas haviam sido responsáveis pelos ciclos de vida e morte passaram a cintilar no céu.

 - Eu acho que vou ficar por aqui... quero tentar criar outras coisas. Se quiser, Sombra, pode explorar alguns lugares. 

 - Maninha? O que quer dizer? Eu quero ficar com você e ver seus sonhos darem frutos. - A prateada não podia crer no que ouvia, talvez fosse um erro de interpretação dela, não seria possível que alguém com quem vivera desde sempre estaria pedindo distanciamento.

 - Sabe, eu acho que quero testar meus limites sozinha agora. Se eu falhar, irei te chamar. Não posso depender de sua correção o tempo todo. Confie em mim, minha irmã. - Luz sorri levemente para a outra, confortando ela.

 - Se é o que quer, vou viajar por esse mundo. Pode ser uma boa oportunidade para ver a beleza do que criamos juntas. Quando terminar, voltarei para te ver. - Sombra abraça a irmã e começa a caminhar para dentro do continente.

 - Boa viagem! - Luz acena para a irmã sorrindo até a figura dela desaparecer. Após não ver sinal dela, a expressão da dourada muda para séria. - Peço desculpas, minha irmã. Mas não posso deixar você destruir essas criações... elas são minhas filhas.

 As duas irmãs tomaram caminhos diferentes, Sombra decidiu apreciar as paisagens que haviam sido criadas, enquanto Luz começou a povoar o mundo com animais. Durante essas criações, os desenhos de Luz ficavam cada vez mais complexos, até que ela começou a fazer seres bípedes com inteligência semelhante a dela.

 - Eu amo você, meus filho. Bem vindo a vida! - Ela abraçou sua grande criação e um brilho azul surgiu nos olhos desse novo ser. - Eu não esperava isso acontecer. Você não tinha isso quando te criei, passou por algum tipo de mudança... Impressionante!

  Diferentes formas desse primeiro ser surgiram, desde alguns semelhantes aos humanos, até outros indivíduos mais complexos com características únicas, porém todos adquiriram olhos azuis brilhantes ao longo do tempo.

  Décadas se passaram e o mundo outrora vazio, agora estava povoado por uma multiplicidade de seres vivos, porém a dominação era dos humanóides de olhos azuis. Sombra estava de volta a praia onde havia se despedido de sua irmã, quem ainda permanecia alí criando mais seres vivos.

 - Maninha! Eu voltei! - Ela correu com braços abertos para abraçar a dourada, porém uma de suas mãos esbarrou em um dos humanóides, que instantaneamente foi apagado, assustando a prateada. Luz virou sua cabeça e encarou a irmã com um olhar vazio. - O-olha, mil desculpas! Eu nunca quis...

 - Você não precisava ter voltado. - Ela disse friamente enquanto cruzava os braços. - Não há erros para serem corrigidos aqui.

 - Maninha? O que quer dizer? 

 - Você é desnecessária, tudo o que faz é destruir minhas criações, tudo que me esforcei para criar. Não entende? Eu tenho uma vida agora, não posso ficar ao seu lado para sempre. - Luz encarava a irmã enquanto permanecia a falar com um tom ríspido, sem se importar com os sentimentos da outra.

 - Luz... achei que éramos uma dupla, juntas criamos tudo isso, não é? - Ela tenta segurar as mãos da dourada, quem as solta imediatamente.

 - Dupla? Olhe ao seu redor. Esses seres vivos que criei são resultado do meu "amor", fiz tudo isso sozinha. Alguém que destrói o que toca não entende o que é amar de verdade. 

 - Mas, eu te amo, irmã.

 - Não. Você apenas é dependente de mim, afinal sou a única coisa que você consegue tocar. Eu entendi agora, nós estávamos sempre juntas por conveniência, para evitar a solidão. Mas agora... é hora de cada uma seguir seu caminho. - Luz passa por Sombra e vai embora, deixando a prateada sozinha no meio da praia.

 - Por quê? Por quê?! Eu nunca pedi essa habilidade! Por que eu preciso ficar sozinha?! - Esses questionamentos eram feitos e se dissipavam ao som das ondas. Lágrimas começaram a escorrer dos olhos de Sombra, os quais destruíam pequenos grãos de areia. 

 - Eu... não sou amada? Estávamos juntas por conveniência? - As mãos dela tremiam e sua tristeza aos poucos era convertida em ódio. - O que é amor?! Por que não posso ter isso? - Os pequenos grãos de areia começaram a desaparecer ao redor da Sombra, até que apenas o vazio restou.

 - Eu não ligo mais... se eu vou ficar só. Agora, só desejo apagar tudo. - O ódio tomou uma expressão apática e o olhar estava vazio, não havia resquícios de quem Sombra era originalmente. - Irmã, você não entendeu uma coisa: Para haver criação... deve haver destruição. - Ela diz isso enquanto anda em direção ao continente, apagando tudo em seu caminho.

 A Lenda da criação de Raret é cercada de muitos mistérios, não é possível saber qual é real ou falso, tudo que se entende é que, após essa separação, o mundo começou de fato, habitado por muitos seres que viriam a ser conhecidos como "Mythis".

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